quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O Sonho - XIV


Levantei-me do chão e num movimento automático calcei uns ténis e peguei no meu sobretudo.
Era domingo de manhã, dia 8 de Novembro... Mesmo ao domingo, NY não parava, havia sempre pessoas que corriam dum lado para o outro.

Entrei no metro e não conseguia parar de chorar e de tremer... Tinha a maquilhagem borrada  e o cabelo desgrenhado, fazendo com que as pessoas se afastassem de mim... Certamente pensariam que eu era uma drogada a ressacar. Uma senhora já com alguma idade aproximou-se de mim: "Sente-se... vai sentir-se melhor." agradeci sorrindo muito ligeiramente no meio das minhas lágrimas.
Enconstei a cabeça ao vidro e comecei a ser inundada com imagens dele a sorrir... parecia que me telepaticamente me pedia que me acalmasse.
Não me conseguia perdoar por não ter lutado por ele, não conseguia deixar de pensar que não o devia ter deixado sozinho estes dias... Porque é que só tinha percebido que o amava agora?! Ao fim de tantos anos, sem entender se era paixão ou mesmo obsessão, porque é que eu só tinha chegado à conclusão que tanto procurei na noite em que ele fora atropelado?!
Outra pergunta que me inundava a cabeça era o que ele estaria a fazer ali, naquele lugar e naquele momento...
Perdida em lágrimas, dor e perguntas, reparei que já estava na estação do hospital, com as portas quase a fecharem... Saltei do banco e corri... corri pelas escadas da estação acima, quase a desfalecer com a falta de fôlego e com a dor de quem não está habituada a correr.

Entrei no hospital em passos largos e dirigi-me à recepção... As lágrimas eram cada vez mais... Balbuciei o nome dele, enquanto comecei a sentir as pernas a enfraquecer, cada vez mais.... "Sente-se bem? Quer uma àgua?" - perguntava a recepcionista. Eu repetia incasavelmente o nome dele, juntando agora "é português"! Quando finalmente a recepcionista entendeu e me pediu a minha identificação, vi que tinha deixado a mala no metro... Com chaves de casa, telemovel e a carteira. Naquele momento, nem pensei nos problemas que isso me iria trazer... eu só queria vê-lo olhar e sorrir para mim, com uns pequenos arranhões na cara. Com sorte, uma vez que quando saía à noite nunca levava os documentos comigo, a não ser cópias, sei que tinha uma nota de 20 dólares no bolso do casaco, bem como uma cópia da carta de condução e do passaporte. A experiência tinha-me feito andar sempre com 2 cópias, uma na mala e outra no bolso do casaco ou calças, bem como, andar com o dinheiro repartido e só em excepções, levar o cartão multibanco.

Depois de preencher o formulário, a simpática rapariga pediu-me que aguardasse que algum médico já viria falar comigo. As minhas pernas tremiam cada vez mais e uma nausea forte invidia-me, começando a querer fazer com que eu perdesse os sentidos. A imagem dele a sorrir na minha mente voltou a aparecer, ajudando-me a restablecer.
Não sei quanto tempo esperei, mas pareceu-me uma eternidade até o Dr. Xopka dirigir-se à sala de espera e chamar alto "Catáriná Gonzalez" - nunca eu iria ouvir o meu nome ser bem pronunciado... Todos me deveriam achar latina atendendo ao apelido que me davam.
Era um médico indiano, bem formado, na casa dos 50 anos, vestido em "papel" azul, com touca na cabeça e máscara no queixo.
"Doutor..." - eu mal conseguia falar, o choro compulsivo impedia-me de raciocinar.
"Por favor, acalme-se... Terá de me ouvir com atenção" - automaticamente, algo em mim me fez acalmar e conseguir ser minimamente racional. - "Desde o momento em que foi socorrido até entrar no hospital, este homem gritou incansavelmente por si. Não sei como conseguiu dar o seu contacto à enfermeira uma vez que estava em choque. O seu amigo sofreu um atropelamento forte por volta das 23 horas e segundo as testemunhas, ele fora o culpado porque falava ao telefone quando atravessou a estrada. O embate foi muito forte, fazendo com que haja fracturas multiplas pelo corpo, desde algumas costelas, ao ante-braço esquerdo e ao pé esquerdo."
"Parece que ele vai ficar quieto por umas semanas" - sorri de alivio por ouvir que era somente fracturas osseas!
"Infelizmente, não sabemos quanto tempo o seu amigo ficará imóvel..."
"Perdão? Não estou a perceber..."
"As costelas ao serem partidas perfuraram um pulmão e tivémos de operar de urgência. Ao abrirmos o peito reparámos que com o embate o baço sofreu uma hemorragia... Houve uma paragem cardíaca durante a operação devido à grande quantidade de sangue perdida e ao impacto da batida no carro. Felizmente, o coração voltou a bater mas.. o seu amigo entrou em coma e não sabemos como irão ser as próximas horas. Poderá ser um processo da operação e das transfusões como poderá ser algo prolongado. Lamento..."

A maior que já tinha sentido em toda a minha vida, foi naquele momento... As minhas pernas deixaram de tremer, deixei de sentir todo o corpo... A náusea aumentou fazendo com que vomitasse tudo naquele momento. Caí redonda no chão, ouvindo o Dr. Xopka muito ao longe chamar auxilio para me socorrer. Quando voltei a mim, estava numa maca com uma manta nos ombros e um liquido altamente doce, cor de rosa, num copo na mão.
"Sente-se melhor?! Não se preocupe... foi o efeito do choque, a menina está bem..."
"Quero vê-lo... quero ir para junto dele..." - balbuciei, meio em inglês, meio em português... Já não conseguia ter força para falar em inglês na totalidade.
"Neste momento ele está no recobro porque acabámos a operação há poucos momentos... terá de aguardar até à sua transferência para um quarto individual. Vá para casa, relaxe e volte ao fim do dia."
"Não... só vou sair daqui depois de o ver... Não me interprete mal."
"Claro que não... pelo amor da nossa vida, fazemos tudo... eu compreendo" - como é que aquele homem que me conhecia há menos de uma hora podia saber que ele era o amor da minha vida?!

Sentei-me na sala da espera e pensei em ligar à Pilar... Mas o meu telemóvel tinha ficado na mala, no metro... Teria de esperar pelo dia de amanhã para ligar para o Hotel e explicar tudo o que se tinha passado.
Sorri sozinha quando no meio daquela dor agonizante que eu tinha dentro de mim, me lembrei do médico dizer que ele estivera todo o tempo a chamar por mim... Era algo que me fazia acreditar que era importante e que num momento de aflição, foi de mim que ele se lembrou.
Comecei a ficar incrivelmente cansada e com uma sensação de drogada ao fim de quase 4 horas de espera... Dirigi-me à recepção e disse-o à atenciosa rapariga que me tinha atendido. Ela explicara-me que me tinham dado um calmante e que era normal e que eu deveria aproveitar para dormir um pouco...
Voltei para a cadeira, encostei a cabeça na parede e enrosquei-me na manta que me deram... Adormeci!

"Catáriná Gonzalez" - gritaram na sala de espera, fazendo com que me levantasse de imediato.
"Sim, sou eu!"
"Acompanhe-me por favor."
Tinha dormido sensivelmente duas horas...sentia-me mais calma e racional. Chegámos à porta dum quarto e o Dr. Xopka esperáva-me no interior:
"Ele vai ser transferido agora... tenha força! Mesmo em coma, os pacientes sentem as nossas energias. Passe-lhe a melhor que tem!"

Em poucos minutos, vi-o entrar... numa cama articulada, entubado pelo nariz e pelo braço e mão direitos, monitores ligados... Senti as lágrimas quentes correrem-me pela cara mas não conseguia ter reacção, os pés estavam colados ao chão. Todos abandonaram o quarto e ele ali ficou... parecia um anjo a dormir... Lindo, calmo e sereno. Tinha um ligeiro corte na maçã do rosto esquerda. Quem o visse, nunca diria que tinha sofrido um acidente.. a cara estava intacta e ele parecia dormir profundamente, perdido nos seus sonhos de menino. Finalmente, consegui ir directa a ele e deixei-me cair de joelhos ao lado da sua cama... Chorei o resto da noite, agarrada à mão dele, no chão... no frio do sofrimento, no vazio da dôr e no silêncio do pânico.

Na manhã seguinte, liguei para o Hotel e expliquei ao Sr.Park tudo o que se passara. Pobre homem ficou aterrorizado, querendo ir de imediato ao hospital. Expliquei-lhe que a condição de saúde não permitia visitas a não ser minha. O Sr.Park disponibilizou-se em tudo o que fora possível, enviando uma hora mais tarde um cesto com comida, uma muda de roupa para mim e um livro. Aquele homem era atencioso como um pai...
Liguei à minha mãe e assim que a ouvi, chorei compulsivamente... como uma criança! Contei-lhe tudo... que ele estava em NY, que nos tinhamos envolvido e que agora... estavamos no hospital. A minha mãe estava boquiaberta com tudo o que ouvira naquela hora.

Voltei para junto dele... Dia 9 de Novembro, segunda feira... Segurei-lhe a mão e deixei a minha cabeça cair junto à sua cintura. Dormitei mais uns segundos, até ser interrompida por um médico e enfermeiros que foram verificar a sua condição física.
Quando voltei para junto dele, fiquei a admirá-lo... Mais uma vez lembrei-me das noites e madrugadas passadas no parque de estacionamento junto à casa dele em Portugal, quando ainda éramos uns míudos... Das vezes que passeámos o seu cão, das vezes que ele guiou o meu carro... Inevitavelmente, as lágrimas quentes caíram-me pela cara mais uma vez.

No final da tarde, Pilar foi ter comigo ao hospital. Quando a vi bater ao de leve na porta do quarto, corri para ela como as crianças correm para as mães quando estão desesperadas por se terem sentido perdidas.
"Como estás cariño?" - dizia ela repetidamente enquanto me limpava as lágrimas.
"Não é justo Pilar... Não é justo!"
"Yo se que no.... Pero... tienes que tener mucha fuerza"
"Eu só o quero ver abrir os olhos..."
"Estás numa lástima... vem até minha casa tomar um banho."
"Não.. quero estar aqui quando ele acordar..."
"Cariño... vem comigo a casa. Tomas um banho, empresto-te roupa e numa hora prometo que te trago de volta"

Fui a casa da Pilar e em 35 minutos, voltei para o hospital.

Era sexta feira 13, meu dia de anos... Desde segunda feira e a minha ida a casa de Pilar, nunca mais saí do hospital. As enfermeiras mostraram-me que havia um pequeno balneário para pessoas que estavam no hospital a acompanhar outras. Desde segunda feira que não derramava uma lágrima ao seu lado. Falava muito com ele, ria e ouvíamos musica... Relembrei em voz alta muitos dos nossos momentos,sempre sem lhe largar a mão. Mas, naquele dia era diferente... era o meu dia de anos e a força começava a escassear...
"Por favor... dá-me um sinal... é o meu dia de anos... Por favor...!" - não me consegui controlar e comecei a chorar deixando a minha cabeça tombar sobre o seu corpo mais uma vez.

Comecei a sentir muito tenuamente a sua mão a tentar apertar a minha... Levantei a cabeça de rompante e falei mais alto - "estás aí meu amor?! Aperta-me..." e o aperto ligeiro voltou a ser notado...levantei-me sem nunca o largar. Carreguei no botão de alarme que chama os enfermeiros e continuei a falar para ele - "estás a dar-me os parabens é?" - e a mão ía sentindo cada vez mais o aperto que ía aumentado - "vais gozar comigo porque faço 31 anos?!" - os enfermeiros conseguiram ver este aperto... forte e sentido. - "Estou aqui paixão... e vou sempre ficar aqui!".... As minhas pernas tremiam e o meu sorriso era expressivo... "Amo-te.."!

Ele abriu os olhos....

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